Estimo que o grande equívoco destas várias interpretações reside de no fato de colocarem o fator religioso num lugar equivocado: dentro da razão. As razões começam com a razão. A razão em si mesma não é um fato de razão. É uma incógnita. Ja rezava a sabedoria dos Upanishad:”aquilo pelo qual todo pensamento pensa, não pode ser pensado”.Talvez nesse “não pensado” se encontra o berço do fator religioso, vale dizer, daquelas instâncias exorcizadas pela racionalidade moderna: a fantasia, o imaginário, aquele fundo de desejo do qual irrompem todos os sonhos e as utopias que povoam nossa mente, entusiasmam os corações, incendeiam o estopim das grandes transformações da história. Seu lugar reside naquilo que o filósofo Ernst Bloch chamava de "princípio esperança" .
É próprio destas instâncias – do utópico, da fantisia e do imaginário – não se adequarem ao dado racional concreto. Antes, contestam o dado pois suspeitam que o dado é sempre feito; tanto o dado quanto o feito não são todo o real. O real é ainda maior. Pertence ao real também o potencial, o que ainda não é mas que pode vir a ser. Por isso, a utopia não se antagoniza com a realidade; revela a dimensão potencial e ideal desta realidade. Já dizia o sábio E. Durkheim na conclusão de sua famosa obra "As formas elementares da vida religiosa": ”a sociedade ideal não está fora da sociedade real; é parte dela”. E concluía:”somente o ser humano tem a faculdade de conceber o ideal e de acrescentá-lo ao real”. Eu diria, de detectá-lo dentro do dado real, fazendo com que este real no qual está o ideal, seja sempre maior que o dado à nossa mão.
É no interior desta experiência do potencial, do utópico que irrompe o fator religioso. Por isso dizia Rubem Alves, quem melhor no Brasil estudou o “enigma da religião”(título de seu livro):”A intenção da religião não é explicar o mundo. Ela nasce, justamente, do protesto contra este mundo que pode ser descrito e explicado pela ciência. A descrição científica, ao se manter rigorosamente nos limites da realidade instaurada, sacraliza a ordem estabelecida das coisas. A religião, ao contrário, é a voz de uma consciência que não pode encontrar descanso no mundo assim como ele é e que tem como seu projeto transcendê-lo”.
Por esta razão, o fator religioso é a organização mais ancestral e sistemática da dimensão utópica, inerente ao ser humano. Como bem dizia Bloch:”onde há religião, ai há esperança” de que nem tudo está perdido. Esta esperança é um amor por aquilo que ainda não é, “a convicção de realidades que não se veem” como diz a Epístola aos Hebreus(11,1) mas que são o fundamento do que se espera.
Quem viu com lucidez esta singularidade do fator religioso foi o filósofo e matemático Ludwig Wittgenstein que disse: no ser humano não existe apenas a atitude racional e científica que sempre indaga "como "são as coisas e para tudo procura uma resposta. Existe também a capacidade de extasiar-se: “extasiar-se não pode ser expresso por uma pergunta; por isso não existe também nenhuma resposta”. Existe o místico: “o místico não reside no "como" mundo é, mas no "fato" de que o mundo exista”. A limitação da razão e do espírito científico reside no fato de que eles não têm nada sobre o que calar.
O religioso e o místico sempre terminam no nobre silêncio, pois não existe em nenhum dicionário a palavra que o possa definir.
Até aqui falamos do fator religioso em sua natureza sadia. Mas ele pode ficar doente. Daí nasce a doença do fundamentalismo, do dogmatismo e da exclusividade da verdade. Mas toda doença remete à saúde. O fator religioso deve ser analisado a partir de sua saúde e não de sua doença. Então o fator religioso sadio nos torna mais sensíveis e humanos. Sua volta sadia é urgente hoje, pois ele nos ajuda a amar o invisível e tornar real aquilo que ainda não é mas pode ser.
Por Leonardo Boff
Leonardo Boff é um teólogo brasileiro, escritor e professor universitário, expoente da Teologia da Libertação no Brasil. Foi membro da Ordem dos Frades Menores, mais conhecidos como Franciscanos. É respeitado pela sua história de defesa pelas causas sociais e atualmente debate também questões ambientais.
Imagem: http://escolaprisma13.blogspot.com.br/2010/08/vivemos-em-uma-sociedade-extremamente.html



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